23.12.08

Alguns números

Quarta-feira passada fui com a minha filha – que, by the way, será adulta a 9 de Janeiro, aceitarei cumprimentos na minha tenda no deserto – à Casa da Comédia, assistir a um concerto de Fernando Guiomar (guitarra) e Miroslava Takova (linda e violino). Os bilhetes custavam 5€ (cinco euros) cada. A viagem de táxi, das Torres de Lisboa às Janelas Verdes e volta, custou cerca de 25€ (vinte e cinco euros). Não é preciso ser-se um Rock Hudson ou um Niels Bohr [Niels Bohr? Porquê um Niels Bohr? Rever isso] para se compreender que o quilómetro de táxi está, em Lisboa, muito mais caro do que o compasso de boa música; mas demorei algum tempo a perceber que isso acontece porque andar de táxi na capital se transformou numa performance – isto é, em Arte, e Arte paga-se bem.

Para além de buzinar e gesticular, usar as luzes de forma criativa e insultar a mãe de tudo o que lhe surgia à frente do pára-brisas, tivesse ou não mãe – exemplos são bocas de incêndio, semáforos, ruas desertas e o que me pareceu ser um Elvis impersonator atravessando (ah, o louco) numa passadeira para peões –, o performer que primeiro fez o favor de para nós se exibir no seu espaço, homem para os seus cinquenta e muitos e dono de umas costas que fariam Rocky Balboa sentir muita vontade de usar saltos altos, não sabia onde ficava o teatro; na verdade, jamais ouvira sequer falar da Casa da Comédia; penso que jamais ouvira sequer falar em teatro. Para ser absolutamente exacto, creio até que ele jamais ouvira sequer falar – éramos provavelmente os seus primeiros humanos. Enfim, deixei que o espírito da época me permeasse. Demandássemos nós uma obscura azinhaga de Marvila e eu não deixaria passar a falha em claro, mas um teatro? Ora, há que ter alguma compreensão, sobretudo em tratando-se do dono de umas espaldas tão platónicas quanto aquelas.

Existem momentos na vida, meditabundo leitor, em que o espírito de um homem se abre como uma amêijoa que acabou de mergulhar na água do caldo, soltando as impurezas que traz dentro de si. Foi uma dessas comoções que experimentei dentro do táxi essa noite. Ars ludi! Ele queria que participássemos no jogo, que nos envolvêssemos no espectáculo! Conhece-me, não me fiz rogado. Pisquei o olho à minha filha, que a viagem deixara com cara de quem acaba de receber um sms revelando que Brad Pitt é afinal um holograma, consegui que ela parasse de me cravar as unhas na mão, até porque isso me estava a doer bastante, e sugeri ao artista que nos atirasse contra a parede do Museu de Arte Antiga: sabíamos onde ficava o teatro, subiríamos a pé e evitaríamos assim essas barreiras castradoras que são os sentidos proibidos, nenhum sentido devia ser proibido, ir em contramão não implica que se está a ir no sentido errado, etc. Como eu previra, porém, o taxista insistiu antes em ligar os quatro piscas em plena rua das Janelas Verdes e solicitar instruções por rádio aos colegas via “Central”, essa entidade sem cara que controla os motoristas de praça do planeta.

Ouvimos entre cinco a dez minutos de música atonal, concreta e mesmo – mas aqui posso estar enganado – dodecafónica. Decerto não Xenakis?, ouço perguntar o aterrado leitor; não, o taxista não teve coragem de ir tão longe, acho que as companhias de seguro não cobrem. Por fim, atordoados e invejando a pacata existência das bactérias não-patogénicas, fomos despejados à porta da Casa da Comédia.

O programa dos Toccata duo ia de Vivaldi e Corelli a música de filme, passando por tango e mpb. Os músicos foram, e não vejo motivo para que não continuem a ser, excelentes; e no entanto, contando comigo e com a minha filha, havia 8 (oito) espectadores na sala. E isso porquê? Porque lá fora, nas ruas sinuosas da velha Lapa, dezenas – quiçá centenas – de táxis performativos lhes roubavam a audiência.

Diz que a Casa da Comédia decidiu organizar concertos deste género todas as quartas. Frequente-os, melómano leitor, verá que vale a pena, mas cuidado, muito cuidado com os prelúdios e poslúdios. O que apanhámos no regresso, por exemplo, cortês, bem educado, condutor responsável, não valia um quinto do que nos cobrou pela corrida.