23.5.11

Recapitulação VIII

Um homem recapitulava toda a sua vida enquanto a maca que ocupava deslizava pelos corredores; e pensou que não a havia vivido na sua plenitude. O rio em que não nadara em criança com medo das cobras de água. O primeiro beijo que não dera com nojo da saliva. As namoradas com quem não namorara porque não queria ter que tomar banho todos os dias. A mulher que não pedira em casamento porque não estava seguro de que ela tomasse banho todos os dias.

Então o momento chegou. O bem-estar, o túnel, a luz muito branca, as vozes chamando. A maca deteve-se. Mãos voaram como pássaros sobre o seu corpo inerte. Mas ele, como sempre, hesitou; e acabou tendo uma experiência de quase-morte.

18.5.11

Recapitulação VII

Numa remota região da China, tão remota que ali os rios desaguam uns nos outros por desconhecerem a existência do mar, habita um povo do qual jamais houve notícia. O que mais o distingue dos outros povos é a sua estranha língua: cada indivíduo pode pronunciar cada uma das palavras do léxico uma única vez. Talvez por isso, existem – de acordo com a última contagem – 271 palavras diferentes para significar «facécia», 6525 para «pórtico», 895477 para «linda» e 9003226635910 para «não».

Os habitantes desta região remota da China possuem nomes ainda mais compridos do que os dos reis de Portugal.

Tribunal das relações

Não era comum encontrarem-se assim, numa mesa de café. Ela chegou tarde, como sempre fazia, e mal humorada, como era seu hábito. "Que me queres?", disparou. "Não vale a pena estar com rodeios", respondeu ele com uma voz triste, "odeio outra".

Ela demorou a recompor-se. Depois deixou que uma película de ternura se lhe instalasse nos olhos.

20.4.11

Recapitulação III

“Pode tirar-me tudo menos o Direito à Indignação”, indignava-se um Homem Indignado. “Não posso tirar-lho, mas posso taxá-lo”, respondeu o Governante Insensível. E quanto mais o Homem Indignado com isto se indignava, mais o Governante Insensível, com a ajuda de um Indignómetro, via o lado da receita subir.

18.4.11

Recapitulação II

O inspector dobrou a gabardina, poisou-a cuidadosamente sobre as costas da cadeira, encheu o peito de ar e disse, ao mesmo tempo que expirava:
«Foi o Marcelo.»
«O Marcelo, inspector…?», escandalizou-se o guarda Caetano.
«O Marcelo, Caetano.»
Tomás entrou de rompante no gabinete, corado ainda do opíparo almoço.
«Viva, inspector! Viva, Caetano!»
«O Américo, Tomás?», perguntou o inspector.
«Pensei que estava consigo.»
«Comigo? Não o vejo desde ontem. Preciso que você vá com ele e com o Caetano.»
«Fazer o quê, inspector?»
«Buscar o Marcelo», suspirou o guarda. Tomás voltou a sua incredulidade para o cívico:
«O Marcelo, Caetano?»

9.2.11

Mínimas

O verdadeiro céptico não é o que duvida de tudo; é o que procura a solução depois de a ter encontrado.

25.1.11

Não Há Crise

Keynes está de volta, avise a mulher dele
Por José Bandeira, especialista

 Instruções para a Economia portuguesa (válidas desde 1995 até KLR650).

Voz: Bem vindo à Linha Economia. Para saber se a TAEG é uma companhia aérea low cost, pressione “1”. Se pretende uma entrevista para emprego, pressione “2” noutro telefone qualquer. Para falar com o presidente do Banco Central Europeu, pressione “3”. Para conhecer o valor do défice, digite “1129745084534781,21”. Para insultar um representante da Moody’s, pressione “*****”. Para falar com um técnico, pressione a sua tia. [Eu pressionando a minha tia]
Técnico: Bom dia. Eu dizia-lhe como me chamo, mas nem isso sei. Em que posso ajudá-lo?
Eu: Eh… bom dia. Aqui Bandeira. Parece-me que tenho a Economia avariada.
Técnico: Estou a ver. Posso saber de onde está a ligar?
Eu: [indo até à janela e olhando para os Pais Natal pendurados nas varandas desde o ano passado] Portugal, tenho quase a certeza.
Técnico: Por favor indique o 13º e o 1298º dígitos do seu código de acesso.
Eu: O que é isso?
Técnico: Correcto. Senhor Bandeira, verificou se a Economia está ligada?
Eu: Julgo que sim. Pelo menos tem um monte de luzes vermelhas acesas, ou talvez se trate de um pequeno incêndio.
Técnico: Muito bem. Experimentou clicar em “A Minha Economia” no Ambiente de Trabalho?
Eu: Sim. Aparece aquele jogo das minas.
Técnico: Hmm… ok, parece-me bem. Clique por favor no ícone “Painel de Especialistas”.
Eu: [clicando no ícone] Não acontece nada.
Técnico: Parece estar a funcionar correctamente. Dê-me a sua morada que nós far-lhe-emos chegar um gráfico com toda a informação de que necessita. [nota: consultar gráfico nesta página]
Eu: Mas preciso da minha morada, não tenho outra onde viver.
Técnico: [com um tom de algum desdém] Compreendo. Talvez consigamos resolver a coisa apenas com o seu endereço. [Eu fornecendo o meu endereço]
Técnico: Com o gráfico segue uma foto da Scarlett Johanson nua. Fazemos isso para que os utentes não prestem atenção ao gráfico. Se preferir, temos uma versão com o Brad Pitt. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
Eu: Bem… quero dizer… então a Economia está em condições? Posso ficar descansado?
Técnico: Sim, sim. Não há crise. [Clic]


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(Texto publicado no nº 4 da revista Companhias.)

21.1.11

Une petite histoire bourgeoise

A FNAC, ou Fédération Nationale d’Achats des Cadres, foi fundada em 1954 por André Essel e e Max Théret, dois membros do movimento Jeunes Socialistes. O seu intuito expresso era o de permitir aos operários a aquisição de bens de retalho a preços acessíveis (soube isso por obscuros documentos que consultei, dias e noites a fio e durante vinte anos, na Bibliothèque Nationale – ou talvez por uma rapidinha na Wikipédia, não me lembro bem). Todos os produtos eram testados num centro independente e aqueles que não atingissem os padrões mínimos iam para uma lista negra. Os funcionários eram treinados de forma a conhecer a fundo a sua área e poder fornecer aos membros da classe trabalhadora todas as informações de que estes necessitassem.

Hélas, todos sabemos o quanto os operários mudaram desde então.

4.1.11

Ditongo Alentejano

“Sou uma mulher simples, mas não sou cega nem surda, Manel. É essa moça da cidade que veio morar aqui para a aldeia. Está fazendo de ti um tonto.”
O pastor afundou-se um pouco mais na samarra.
“Não digas disparates, Dores.”
“Estás vendo? Já nem pronuncias o –e em posição átona final como –i.”
“Tolice. Estou chupando uma azeitona.”
“E o –i em lugar do –e pretónico? E a ditongação de –e em –ei?”
Manel dobrou-se devagar e aconchegou as achas da lareira, tentando ganhar um pouco de tempo. Como não se apercebera que andava ditongando o –e?