16.6.14

A Vida Clandestina

Eu à época fumava; e às vezes fumava em lugares estranhos. Em Grenoble era num gabinete de paredes encardidas no piso térreo de uma empresa de tecnologia de ponta. Tinha janelinhas de guilhotina sempre abertas para o Dezembro dos Alpes e por única peça de mobília um cinzeiro de pé, ao centro, embaraçoso de tão cheio. Acredito que não o esvaziaram nunca, e que hoje o cone de beatas há-de ter ultrapassado em proeminência o pico do Chamechaude (digo o do Chamechaude para que não pense que estou a exagerar). Uma bancada na parede tornava-se inacessível por efeito de um aviso descortês de proibido sentar. Os fumadores (os outros, por nojo, nunca entravam) sentiam ali um desconforto tão intenso – do frio, do cheiro, do enxovalho – que não tiravam do cigarro consolo e saíam acanhados e tristes, de uma tristeza um pouco amarela.

Em São Paulo era numa divisão de um dos últimos andares de um arranha-céus, frequentada do lado de dentro por executivos em escapadinha de reuniões decisivas e do lado de fora por negros urubus. Talvez por causa do vento, talvez por motivos mais funestos, as grandes janelas não podiam ser abertas e a exaustão de ar era feita através de cilindros ciclópicos. De vez em quando passavam libelinhas ruidosas transportando homens de fato escuro, poderosos como heróis da Ilíada nos seus carros de combate. Eles saíam num terraço, desciam dois andares, davam as suas ordens, talvez até despedissem alguém; depois partiam para repetir o ritual noutro poiso qualquer, no entretanto elogiando a vista da cidade que às vezes parecia tão Nova Iorque assim vista do ar, mas era num relance só e a luz tinha de ser a de certa hora da manhã.