30.3.09

Espere


Li algures que um filme de Manoel de Oliveira vai estar, pela primeira vez, presente na programação do Indie Lisboa. Já era tempo, até porque não é a primeira vez que um índio está presente num filme de Manoel de Oliveira, hahaha. [Céus, que piada tão rente-ao-pasto, mas que fazer? Não há tempo para mais, depressa, avancemos antes que o inexorável leitor – ou seria “inoxidável”? Não me lembro – perceba.] A interpretação do meu rebento na recente produção de A Menina do Mar foi, como eu previra, um sucesso retumbante: a assistência aplaudia desesperadamente frente às modernas portas, daquelas que se abrem quando se bate palmas, hahahahahaha. [Mais uma piada como esta e o sorumbático leitor vai espetar a faca de cortar papel no ecrã.] Sabia que Jonas se recusava a rasgar as vestes porque vestia Armani? o Senhor castigou-o fazendo com que o fato cheirasse a peixe. Ha-ha. [Ok. Assinei a minha sentença de extradição para a Islândia. Logo agora, com a crise financeira e isso. E eu que criara o blogue com o alto propósito de discutir Literatura Russa.]
Bom. Pela janela vejo prédios, árvores, carros, algumas lojas, pessoas. Chegou a altura de tentar perceber onde é que eu vivo e se existe um restaurante vegetariano por aqui: não quero correr o risco de um dia passar perto, ando tão sensível. Entretanto, vai um postezinho sobre Turgueniev? Dostoievski? Gogol? Espere, esse era ucraniano.

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Foto: o meu pequeno búzio, ao centro, agradece, como o pai lhe ensinou, os aplausos da multidão encurralada. Do lado esquerdo da foto, o deus do mar exibe a sua grande barbicha amarela, ou vomita o almoço, não percebi bem.

24.3.09

Castelo interior

Como Santa Teresa de Ávila disse à carmelita descalça, ponha-se nos meus sapatos, dípode leitor: vai um pai com seu rebento ao supermercado e dá de caras com um homem verde fingindo que é estátua. Achei uma indecência, enganar as crianças dessa maneira – existem técnicas bem mais avançadas, algumas das quais (a modéstia proibe que o diga) inventadas por mim (olhe, já disse e não trouxe corrector, processe-me).

O júnior apercebeu-se do que eu ia fazer e ainda se quis interpor entre mim e a execranda criatura, mas tarde chegou. Com a determinação de um Sir Gawain aliviando o Cavaleiro Verde de uma dor de cabeça, ergui os braços na direcção da abóbada celeste e atirei o BU! mais assustador de que fui capaz com apenas um copo de leite e um café no estômago.

O salto que o embusteiro deu, leitor, havia de ter visto.

O pior é que eles eram afinal dois, e após breve conferência decidiram seguir-nos, semelhando autómatos, pelo corredor dos artigos de higiene pessoal. Aí, sim, aí confesso que senti alguma apreensão e apenas a custo resisti à indignidade da fuga através da secção de sapatos de senhora.

23.3.09

História muito tola e no entanto vera

Disputava o príncipe com o rei a única casa de banho do palácio:
“Precisamos de fazer a barba”, dizia o príncipe.
“E nós queremos tomar um banho de imersão”, retorquia o rei.
“Mas nós vamos passar a noute fora com uma cortesã gaiteira”, insistia o príncipe.
“Pois ide como estais, e tende o cuidado de tornar perfumado ao paço”, arreliava-se o rei.
Desta forma encostado aos azulejos, o príncipe permitiu que o rei entrasse na vetusta banheira; após o que lhe afogou a majestade sem grande dificuldade.

Ultrapassada alguma comoção inicial, o povo aclamou o matante como seu governante; e, em sinal de agradecimento à Divina Providência, o novo monarca não voltou a tomar banho de imersão em toda a sua longa vida – ainda hoje luzem no palácio o duche e polibã doirados que em lugar da real banheira ele mandou fossem instalados.

22.3.09

Dezassete

Vai o meu rapaz actuar, já na quarta-feira próxima, numa exigente produção escolar de A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner, cabendo-lhe defender nada menos que dois papéis da maior relevância para o desenrolar da trama: o de polvo e o de búzio. A este último cabem duas valorizadas deixas, ao passo que o apetitoso cefalópode brilha mais pelo lado do desempenho somático, naquilo que se quer uma diegese estética da Volúpia-de-Si.

O histriónico leitor decerto aprovará que eu tenha de imediato iniciado a criança na Poética de Aristóteles, assim como n’A Origem da Tragédia, de Nietzsche; os cujos lhe li, como Ambrósio a Agostinho, em voz alta; permanecendo o menino amarrado a uma cadeira, com um adesivo do rato Mickey na boca e a uma distância segura do televisor mais próximo.

Estarei na primeira fila, naturalmente. E quando, cercado por amigos, conhecidos ou simples admiradores que não desdenharei, me perguntarem se a estrondosa crítica saiu na página um do jornal, responderei como o grande António Silva, o dedo indicando as himalaicas alturas:

“Upa, upa! Dezassete!”