31.10.08

Custava?

Na Roma republicana, os clientes levantavam-se cedinho para ir a casa dos patronos perguntar-lhes como haviam passado a noite. Levo um pouco a mal que não façam o mesmo comigo, sobretudo em madrugadas chuvosas e de insónia como a de hoje. Está certo que não tenho clientes (pelo menos não no sentido romano do termo), mas custava muito?

Custava?

Sei que isso mudará quando eu ganhar o Euromilhões ou o Totoloto. Sou um apostador inteligente: não gasto nada porque não registo os papelinhos. Pensei um pouco e concluí que as probabilidades de ganhar aumentam se jogar, sim, mas só um poucochinho.

(Também não consigo entender isso do “problema do barco de Teseu”. Não existe um título de propriedade?)

29.10.08

A uma amiga do peito

Sei-te alegre na tua cama de hospital, gozando a folga imprevista com os teus livros e o teu portátil, um monte de visitas trazendo mimo e consumíveis vários, e isso aplaca-me um pouco a revolta, mas não te perdoo. Não vês como as árvores aí fora estão cheias de viço, apesar de quase Novembro? Isso há-de querer dizer alguma coisa, nem que seja que os jardineiros de Santa Maria não as podam como deve ser.

27.10.08

O chow-chow de Freud

Na última década de vida de Freud, o seu chow-chow Jo-Fi sentar-se-ia aos pés do sofá durante as sessões de terapia e levantar-se-ia na hora aprazada para o seu termo. Os pacientes nunca se aperceberam de que Jo-Fi ia encurtando progressivamente a duração das sessões – que para eles, de qualquer modo, eram sempre curtas de mais.

Podias até estar com a razão, Salústio

Podias até estar com a razão, Salústio, espécie de comedor de lentilhas retentor anal, se Atenas tivesse produzido apenas bons historiadores (e entre eles, sabe-lo bem, havia filo-espartanos). Mas, e a filosofia? O drama? A comédia? A poesia? A retórica? A cerâmica? A escultura? A arquitectura? A Aspásia? Ateeeeenas.

Morde o pó, Salústio.

21.10.08

Passadeira

“O oposto de andar não é estar parado”, garantia o empreiteiro ao seu treinador pessoal, “o oposto de andar é vivenda com piscina”.

17.10.08

Alexandre o Grande era um homem pequeno

A insónia é uma coisa horrível, sobretudo quando me impede de dormir. Acabo escrevendo postes às cinco da manhã sobre... eh... insónia, contando todos os meus segredos na recepção do hotel ou procurando ganhar sono com a leitura de obras difíceis. David Hume escreveu uma, mas as pessoas queixaram-se e ele, admitindo que errara, reescreveu-a. Quantos fariam o mesmo? Não eu. Continuarei a escrevinhar nesse estilo pretensioso, rebuscado e cheio de referências obscuras, alimentando o meu anseio infantil de parecer importante e culto. O essencial não é que as pessoas percebam o texto: o essencial é que percebam o seu lugar.

Os celtas que desceram à Grécia para conhecer Alexandre voltaram para casa rindo.

15.10.08

Fazer o bem sem olhar a quem

Acontece-me de cada vez que chego a casa um pouco mais tarde e, pensando os meus pensamentos, atravesso devagar a rua deserta: um caniche com ar de advérbio de modo que habita terraço próximo espera o preciso momento em que eu passo em baixo para me sobressaltar com aquele latir esganiçado que ele tem (desculpe a frase comprida).

Ontem, saía eu de casa com o meu filho, vi o bicho na rua. O dono repetia “vá, força”, mas a criatura estava com evidentes dificuldades para dar conta de si. “Demasiada carne humana”, disse eu baixinho ao menino, e ele estremeceu.

Entrámos no carro. E à medida que nos aproximávamos do local onde o animal ainda obstipava, vi passar aquela treva, sabe, aquela que nos obnubila o pensamento e nos deixa nas mãos de uma potestade a que não sabemos nem podemos resistir. Então avancei até cerca de metro e meio do caniche e dei um vigoroso toque de buzina.

Foi remédio santo. Mas sabe que o meu vizinho nunca me agradeceu?

14.10.08

Ao tempo de Dante

Ao tempo de Dante, uma biblioteca de cem volumes era um mamute e as pessoas liam os mesmos cinco ou seis livros vezes sem conta. O número de volumes crescera para mil na época de Montaigne (era esse o tamanho da sua biblioteca), mas já ninguém tinha paciência para ler alguns autores. Nas prateleiras de Mafra existem quê, quarenta mil? Cinquenta mil? E ainda há dias a Biblioteca Nacional anunciou obras para aumentar a sua capacidade de forma a poder acolher mais de um milhão de novos volumes.

E no entanto, na época de Dante não havia em todo o mundo dois livros iguais. Que é que isso nos diz?

Não faço ideia, mas achei super interessante.

13.10.08

Muito francamente

Não sou do tipo que quer ir acabar os seus dias na província: sou do tipo que quer ir acabar os seus dias no hotel.

8.10.08

7.10.08

Mutatis mutandis

Há dois mil e seiscentos anos (tanto assim? Como o tempo passa), também em Atenas havia problemas de endividamento. Flagelados por um sem-número de contrariedades – más colheitas, pragas, aumento de taxas de juro, etc. –, os cidadãos não conseguiam pagar os seus ecrãs plasma gigantes e a taxa da Sport TV (para além de luxos como cereais e coisas assim) e viam-se reduzidos pelos seus credores à condição de escravos.

Temendo os episódios sanguinolentos e, sobretudo, as competições de lira que sempre acompanhavam os períodos de ruptura na Grécia antiga, os atenienses, pobres como ricos, concordaram em pedir ao seu compatriota Sólon – um dos “sete sábios” da Antiguidade – que reformasse as leis da cidade e restaurasse por meios pacíficos a paz social. Sólon aceitou, mas impôs uma condição: por um período de dez anos, nenhuma das suas leis poderia ser alterada sem que antes lhe fosse pedido um parecer. Os atenienses acolheram a cláusula com um encolher de ombros e pelas costas riram-se muito e chamaram ao sábio “Sólon Freitas do Amaral”.

O legislador pôs mãos à obra e substituiu a maior parte das leis de Draco, que condenavam um grego à morte por cortar uma unha, por outras menos, enfim, draconianas. Criou novas classes de censo baseadas na capacidade de produção agrícola e não, como até então sucedia, no berço; proibiu a escravidão por dívidas; por fim (preste atenção, se for banqueiro pare de ler aqui mesmo, não diga que não o avisei), anulou todas as dívidas existentes à data. Leu bem: quem devia alguma coisa ficou a dever coisa nenhuma.

Os escravizados por dívidas viram-se livres e ficaram contentes, mas foram os únicos. As grandes famílias nobres perderam privilégios e ficaram possessas; os pobres queriam mais direitos políticos e ficaram chateados; os ricos ficaram um pouco menos ricos – e furiosos.

Então Sólon, de cujo parecer, lembre-se, dependia qualquer mudança, viajou para parte incerta por um período de dez anos.

6.10.08

Colina abaixo

Eu vinha planeando escrever uma novela oitocentista em que as personagens se comportavam como presunçosas insuportáveis e tudo era enfatuado e falso. Romance acontece; novela desenrola-se. A história seria publicada em episódios e começaria num rígido colégio para raparigas de onde sairiam a ladina Elisabete, inteligente mas deserdada da vida, e a boazinha mas enjoativa Amélia, em casa de quem a primeira se empregaria como governanta. Elisabete tentaria um casamento com o irmão gordo de Amélia, José, comerciante nas Índias Orientais, mas veria a sua estratégia fracassar com a intervenção do irmão magro e canalha da amiga, o tenente Jorge (nem todos os magros são canalhas, mas os canalhas são quase todos magros). A partir daí era tudo colina abaixo. Ok, não adianta esconder, já todos perceberam que o enredo era baseado na história da minha vida. Pelo menos a parte da colina abaixo. Então descobri que um tal William Makepeace Thackeray (um nome obviamente falso, nada a ver com os Thackeray do Fundão) roubara a minha ideia. Ele foi ao ponto de chamar à sua novela “Feira das Vaidades”. Eu planeara dar-lhe o nome “Feira do Relógio”. Admito que, pelo menos nesse capítulo, ele esteve melhor do que eu. Informei-me sobre o indivíduo e descobri que se fazia passar também por cartoonista. Dá para acreditar?

Perturbado, fiz o teste de Turing, mas felizmente deu negativo.