25.6.09

O Universo Elegante e outros contos

Desculpe qualquer conversa que me escape sobre mecânica quântica, cosmologia, supercordas, horizonte de acontecimentos, singularidade, entropia e coisas que se lhes semelhem. O desgosto com a crise deu-me para ler sobre o assunto, já vou no milésimo calhamaço – o que terminei agora, The Fabric of the Cosmos: Space, Time, and the Texture of Reality, tem praticamente 600 páginas neste universo (noutros pode ter ou não). E no entanto, só ultimamente comecei a ter noção de que, por exemplo, menos que dez dimensões espaciais é coisa para meninos e que se pode passar através de um túnel de verme sem se ter nojinho dele (e ainda ganhar tempo com isso).

Deixe que me orgulhe de dizer que eu mesmo já ilustrara, para os livros do Carlos Fiolhais e do professor Dias de Deus (ambos excelentes terráqueos e bons amigos, saudades de uma almoçarada, para a semana terei um pouco de tempo e muitas perguntas) os Grandes Mistérios da Física, tanto da astronomicamente grande (como a Relatividade Geral, Restrita e Não sabe / Não responde) como da ridiculamente pequena (conhecida nas cantinas das faculdades como “Física da Partícula de Napoleão”).
Mas não ligue, isto passa-me. Até Freud disse que às vezes um buraco negro é apenas um buraco negro. Ou se não o disse neste, disse-o num universo paralelo qualquer.

23.6.09

A Áustria não existe. Ok?

Eu nunca tinha assistido a uma peça de Schnitzler. Eu jamais lera uma frase escrita por Schnitzler. Eu não sabia como pronunciar correctamente “Schnitzler”. Sempre suspeitei de que esse Schnitzler nem sequer tinha existido, até porque me diziam que havia nascido austríaco e eu não acredito na existência da Áustria. Sei que isso cobre com o infame véu da dúvida ontológica as vidas e feitos de um monte de celebridades, mas, e então? Repare como Freud, outro “austríaco”, considerava Schnitzler (numa carta que, muito convenientemente, lhe “escreveu”), uma espécie de “versão literária” de si mesmo. Conspirações existem, e quanto mais descaradas, cândido leitor, quanto mais desavergonhadas, mais eficazes. Acredite.

O monólogo durou duas horas que, não fossem aquelas cadeiras (ok, o problema pode ser da minha espinha de fancaria, mas ser-se rezingão é um privilégio que vem com a idade), durariam um instante apenas, porque Rita Durão fez esquecer o tempo que passava. E felizmente o Universo é cíclico, ou ela não poderia ter repetido aquele papel todas as noites. Oh, bolas. Revelei o fim? Desculpe.
[Eu visitando a página da Cornucópia e batendo com a cabeça repetidamente numa porta]
Eu queria ter escrito sobre este assunto antes, queria que fosse ver a Rita Durão, mas apenas agora me apercebo, com pena, de que a peça já saiu de cena. Aqui me detenho. Que fiasco. Enfim, como Beckett, falhar outra vez, falhar melhor. A título de consolação, saiba que o texto, em tradução de José Maria Vieira Mendes, está editado em português pela Cotovia. Pode ler um resumo na página deles.

E por favor, vamos parar com essas invenções de “Áustria”, “Wittgenstein”, “Popper”, “Klimt”, “Mozart”, “Segunda Escola de Viena”, etc. Ok? Caramba, existe um limite para a puerilidade.

22.6.09

Entropia

A Segunda Lei da Termodinâmica diz-nos (e simplificarei para não intimidar o leitor que, ao contrário do que sucede comigo, não toma o cafezinho da manhã na cantina de Cornell) que a entropia de um sistema isolado – entendida aqui, por derivação de sentido, como o seu grau de desordem – tende a aumentar com o tempo até atingir um valor máximo, que será o de equilíbrio.

No caso do meu automóvel, esse momento mágico acontece quando surge no vidro traseiro a mensagem “lava-me, porco”.

18.6.09

Cultúr éireann

Imagine, plurilingue leitor, um micaelense imitando o sotaque algarvio num teatro de Oslo repleto de espectadores inuit. Terá então uma ideia do quanto Jimmy Joyced!, o monólogo apresentado pelo brilhante Donal O’Kelly no Jardim de Inverno do S. Luiz, era perfeitamente inteligível – pelo menos para a parte da assistência constituída pelo representante da embaixada da Irlanda.

A ideia era celebrarmos Bloomsday, mas Donal tinha uma pronúncia irlandesa tão densa que um pouquinho mais de massa e seria um buraco negro. Nem mesmo na Babel pós-intervenção divina eu ouvi semelhante algaravia, se exceptuar o doido do Simões do 7146º (e último) andar. Hoje, na era da Ciência, sabemos que aquele brlghbrl tinha algo a ver com a rarefacção de oxigénio.

Mas ok, deu para perceber que O’Kelly é um excelente actor, dotado de enorme expressividade e senhor de uma voz muito flexível. Isso tornou a minha incapacidade para perceber dois terços do que ele dizia ainda mais dolorosa, e sublimei a frustração pensando em como irlandeses não deviam usar franjinha em climas quentes porque ela fica toda suada e aos caracolinhos, como as do cabelo das meninas vitorianas antes da invenção do banho diário pelo Dr. Doosh.

Felizmente eu tivera o cuidado de ler, na meia hora anterior, as Obras Completas de James Joyce (incluindo, naturalmente, Orgulho e Preconceito, A Abadia de Northanger e Emma), para além do útil The Bluffer’s Guide to Icelandic Literature. Isso – e ouvir Björk cantando as suas bonitas baladas celtas – ajudou-me a entrar no espírito irlandês e a ir reconstruindo o que podia das conversas de Jimmy Joyce com o pai meio doido, o traumático episódio religioso com a mãe, o encontro com o modelo de Bloom, o passeio com Nora Barnacle, a medalha de bronze que ganhou no Eurofestival da Canção e que tanto o desiludiu, etc., etc..

De tempos a tempos ouvia-se uma gargalhada bem lá no fundo da sala, emitida pelo representante da embaixada irlandesa (ou por uma gravação de Brigitte Bardot assistindo à execução de um comerciante de casacos de pele, não tenho a certeza, mas acho pouco provável). As almas remanescentes guardaram todo o tempo um respeitoso silêncio, mesmo quando os gestos do histrião denotavam um grau de comicidade que parecia seguro premiar com pelo menos uma risadinha. Mas olhe, talvez tenha sido melhor assim, quero dizer, mais absurdo: no final toda a gente gostou muito, o representante da embaixada da Irlanda limpava as lágrimas dos óculos [eu tentando lembrar-me se ele tinha óculos] e na rua aglomerava-se um pequeno grupo de apoiantes de Mussavi perguntando, em inglês escrito com sotaque universal em papéis verde-brancos, “Where is my vote?”: como aconteceu com o monólogo de Dolan, ninguém entendeu os resultados daquelas eleições.

Imaginei O’Kelly gastando algumas horas no seu quarto de hotel a tentar perceber o que se passara no S. Luiz e achando, pelo menos enquanto durava o lote de Jameson do minibar, que os portugueses se riem, afinal, como os escandinavos – sem pestanejar nem mexer os lábios, os mais divertidos fazendo até que estão mortos ou disputando campeonatos de ver-quem-mexe-a-boca-primeiro, sabe como é, como mimos franceses mas completamente diferente.

Na noitinha do dia seguinte, outro monólogo, o da menina Else (pequena grande Rita Durão!), percebeu-se do princípio ao fim, mas eu recuso-me a falar disso enquanto a Cornucópia mantiver aquelas cadeiras – ou enquanto amanhã não chegar, o que acontecer primeiro.

Bandeira de Papel


Cravo e Ferradura, DN, 18.6.2009

9.6.09

Conhecer o porteiro

Mais logo verei – e ouvirei – Don Giovanni caindo nos infernos. E foram já tantas as vezes que o vi – e ouvi – cair nos infernos, que começo a convencer-me de que aquilo é um sítio de onde não é tão difícil assim sair e voltar a entrar.

Clara e distintamente

Após o décimo primeiro derrame na vista tentando ler a mesma frase de What I Loved”, de Siri Hustvedt (We tracked Matt’s development with the precision and attentiveness of Enlightenment scientists”), percebi finalmente que o problema não estava na frase, aliás muitíssimo conseguida, mas nos olhos em si.

Eu havia sido prevenido pela minha oculista e pela Oprah Winfrey de que, em alguma altura após o 40º ano de vida, os mecanismos de focagem japoneses no interior dos globos oculares estão programados para deixar de obedecer às ordens que o cérebro lhes fornece, em particular se este for de fabrico nacional. A nossa visão ganha personalidade e passa a interessar-se exclusivamente por aquilo que lhe dita o capricho próprio; sendo que raramente lhe apetece fixar-se em frases de pendor literário ou filosófico, preferindo perder-se em objectos distantes, nem sempre desinteressantes mas frequentemente inapropriados para o homem de princípios elevados que modestamente me vanglorio de ser.

Eu, porém, tomara a benigna advertência por uma tentativa comercialmente orientada para impingir “lentes progressivas” aos meus óculos novos. Sabe quando vai ao mecânico trocar um pneu e ele lhe diz que aproveitou para trocar discos, pastilhas e o motor? Pois eu achei que a visão humana não deve ser doutrinada e escolhi lentes com a mesma graduação das que trazia, uma vez que a dificuldade que me levava a trocar de óculos consistia apenas numa certa inadequação da armação: por mais que uma vez amigos me preveniram de que as hastes lhes pareciam mais apropriadas para literatura light que para o género de leitura pretensiosa e obscura que gosto de exibir em esplanadas, centros culturais e antigos países de Leste.

[Eu tentando perceber por que raio escrevi isso dos países de Leste]

Agora, curvado ao peso da evidência e sufocado pelos fumos de suspeição em que injustamente envolvera a honesta oftalmologista, trago para casa “óculos para ler”. Terei de me habituar ao ritual de andar com o aparato óptico pendurado ao pescoço ou assente na pontinha do nariz, uma vez que, para lá dos 40cm, toda a gente me parece o rato Mickey – ou a rata Minnie, se tiver voz grossa –, motivo pelo qual não dispenso os óculos “de ver ao longe”.

Eu não o esperava, dióptrico leitor, mas a minha capacidade de leitura aumentou de uma forma excepcional. Li em meio dia o baú da Summa Theologiae de Aquino, incluindo a parte que ele nunca chegou a escrever, no latim original; aproveitei os intervalinhos de café para uma revisão aprofundada da Suda bizantina e, em jeito de digestivo, devorei os três volumes de Decline and Fall of the Roman Empire, de Gibbon, anotando erros factuais e incorrecções de interpretação nas margens de nada menos que 638 páginas. Também as minhas capacidades indutiva e dedutiva (antes apenas distinguia uma da outra expondo-as, lado a lado, à luz do sol) sofreram um apreciável incremento de acuidade. Ao passar os olhos com os óculos novos pelo Crítias, por exemplo, apercebi-me de que Sócrates teria morrido com muito mais qualidade se os atenienses do período clássico usassem cicuta de cultura biológica.

Planeio agora uma velhice elegante. Óculos na ponta do nariz sugerem temperamento afável e evocam a sabedoria da idade; um confortável quimono japonês em seda dará o necessário toque de sofisticação novecentista; a gota, em piorando, pode ser aliviada com o auxílio de uma distinta bengala. Tudo isto vejo eu agora muitíssimo bem.

Oh, ok, um momento de franqueza. A verdade é que estou ainda a habituar-me. Não tenho sequer a certeza de que esteja aí desse lado, embaciado leitor. Nestas inusitadas semanas de pontes que vão de nenhum lado a lugar algum, não há como sabê-lo. Mas vou fiar-me, mesmo não o vendo a si, que o leitor, a mim, me consegue ver com cartesiana convicção, isto é: clara e distintamente.

8.6.09

De lua cheia

Quando passo na rua e um muro, um hidrante ou um semáforo calham cumprimentar-me, retribuo a gentileza; e só então reflicto sobre como é estranho ser-se cumprimentado por um muro, um hidrante ou um semáforo.

Estou convencido de que a boa educação nos ajuda a preservar a saúde mental neste mundo de gente alucinada.

O lugar (II)

A senhora Cheng Feng, Secondary Announcer de uma tal “Huangshi Dongbei Electrical Appliance Co., Ltd.”, informa-me por correio electrónico de que ganhei o segundo lugar das suas promoções anuais, tendo direito a um Range Rover e a 970 mil dólares americanos.

Existe algo de profundamente deprimente nisto. Não tanto no facto de se tratar de um esquema para me sacar dinheiro; mas em saber que, num esquema para me sacar dinheiro, fiquei em segundo lugar.

O lugar (I)

A barra “que antes estava em baixo”, no computador da minha mãe, agora “passou para o lado”, o que, naturalmente, a incomoda. E a senhora pede-me que, em visitando-a, ponha a barra “no seu lugar”.

Humanos, demasiado humanos

Como na Atenas clássica, escolhemos ontem os cidadãos que queremos a todo o custo ver fora do país por alguns anos. Mas vá, somos mais humanos: reduzimos o período de ostracismo para metade e sempre lhes damos algum dinheirito para se irem aguentando lá no estrangeiro.

1.6.09

I forget

O túmulo siciliano de Ésquilo não faz qualquer menção à sua dramaturgia: exalta apenas a coragem que demonstrou, em Maratona, contra “os medos de longos cabelos”. É como se na lápide de Samuel Beckett, que a pedira de uma cor qualquer desde que fosse cinzenta, constasse algo como

Jogou críquete pela Universidade de Dublin, tendo sido fundamental em duas vitórias sobre Northamptonshire; tem uma entrada no afamado Wisden Cricketer’s Almanack.

Ele decerto teria aprovado isso, mas não se lembrou.
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Nota: esqueça a importância de Maratona para a afirmação de Atenas, uma cidade que até então vinha apenas mencionada de passagem no “catálogo das naus” da Ilíada e em  meia dúzia de mitos obscuros; esqueça o orgulho de Ésquilo na glória da sua cidade; não é disso que estou a falar. Eu não sei sequer do que estou a falar. I forget.