Imagine, plurilingue leitor, um micaelense imitando o sotaque algarvio num teatro de Oslo repleto de espectadores inuit. Terá então uma ideia do quanto Jimmy Joyced!, o monólogo apresentado pelo brilhante Donal O’Kelly no Jardim de Inverno do S. Luiz, era perfeitamente inteligível – pelo menos para a parte da assistência constituída pelo representante da embaixada da Irlanda.
A ideia era celebrarmos Bloomsday, mas Donal tinha uma pronúncia irlandesa tão densa que um pouquinho mais de massa e seria um buraco negro. Nem mesmo na Babel pós-intervenção divina eu ouvi semelhante algaravia, se exceptuar o doido do Simões do 7146º (e último) andar. Hoje, na era da Ciência, sabemos que aquele brlghbrl tinha algo a ver com a rarefacção de oxigénio.
Mas ok, deu para perceber que O’Kelly é um excelente actor, dotado de enorme expressividade e senhor de uma voz muito flexível. Isso tornou a minha incapacidade para perceber dois terços do que ele dizia ainda mais dolorosa, e sublimei a frustração pensando em como irlandeses não deviam usar franjinha em climas quentes porque ela fica toda suada e aos caracolinhos, como as do cabelo das meninas vitorianas antes da invenção do banho diário pelo Dr. Doosh.
Felizmente eu tivera o cuidado de ler, na meia hora anterior, as Obras Completas de James Joyce (incluindo, naturalmente, Orgulho e Preconceito, A Abadia de Northanger e Emma), para além do útil The Bluffer’s Guide to Icelandic Literature. Isso – e ouvir Björk cantando as suas bonitas baladas celtas – ajudou-me a entrar no espírito irlandês e a ir reconstruindo o que podia das conversas de Jimmy Joyce com o pai meio doido, o traumático episódio religioso com a mãe, o encontro com o modelo de Bloom, o passeio com Nora Barnacle, a medalha de bronze que ganhou no Eurofestival da Canção e que tanto o desiludiu, etc., etc..
De tempos a tempos ouvia-se uma gargalhada bem lá no fundo da sala, emitida pelo representante da embaixada irlandesa (ou por uma gravação de Brigitte Bardot assistindo à execução de um comerciante de casacos de pele, não tenho a certeza, mas acho pouco provável). As almas remanescentes guardaram todo o tempo um respeitoso silêncio, mesmo quando os gestos do histrião denotavam um grau de comicidade que parecia seguro premiar com pelo menos uma risadinha. Mas olhe, talvez tenha sido melhor assim, quero dizer, mais absurdo: no final toda a gente gostou muito, o representante da embaixada da Irlanda limpava as lágrimas dos óculos [eu tentando lembrar-me se ele tinha óculos] e na rua aglomerava-se um pequeno grupo de apoiantes de Mussavi perguntando, em inglês escrito com sotaque universal em papéis verde-brancos, “Where is my vote?”: como aconteceu com o monólogo de Dolan, ninguém entendeu os resultados daquelas eleições.
Imaginei O’Kelly gastando algumas horas no seu quarto de hotel a tentar perceber o que se passara no S. Luiz e achando, pelo menos enquanto durava o lote de Jameson do minibar, que os portugueses se riem, afinal, como os escandinavos – sem pestanejar nem mexer os lábios, os mais divertidos fazendo até que estão mortos ou disputando campeonatos de ver-quem-mexe-a-boca-primeiro, sabe como é, como mimos franceses mas completamente diferente.
Na noitinha do dia seguinte, outro monólogo, o da menina Else (pequena grande Rita Durão!), percebeu-se do princípio ao fim, mas eu recuso-me a falar disso enquanto a Cornucópia mantiver aquelas cadeiras – ou enquanto amanhã não chegar, o que acontecer primeiro.