27.1.14

Recapitulação V

Um velho muito velho e estragado encontrou o rei de França junto a um Mercúrio em bronze e entabulou conversa com ele. Sentaram-se nas conchas de uma fontezinha rococó com peixes encarnados e tritões de pedra e contaram as suas vidas um ao outro. O velho falou das imensas provações por que havia passado na sua muito longa existência; o rei, do seu extraordinário poderio. Quando já não tinham mais nada para dizer um ao outro, o velho perguntou ao monarca se trocaria de vida com ele. O rei de França respondeu: «O diabo seja cego, surdo e mudo!» E o pobre diabo ficou cego, surdo e mudo.

17.1.14

O Lisboeta à Chuva

O lisboeta acorda, espreita pela janela, tira uma fotografia à coisa branca no asfalto (neva na rua dele!); não é neve, é granizo, faço ideia o quanto se ririam disso a norte mas no fundo é tudo igual, tudo coisa branca, conheço quem a odeie porque tem que lhe aturar as inconveniências metade do ano. O lisboeta lava-se, agasalha-se um pouco mais do que o costume e sai para a rua. A medo pisa a coisa branca, confirma que escorrega muito, troca duas palavras de espanto com a empregada da boutique do rés-do-chão e lá vai, adaptado, para o seu emprego, ou para o seu desemprego, ou para o que calhe, como se este clima parisiense lhe fosse a coisa mais natural do mundo. Estou a vê-lo ao fundo da rua, já corre, é para não perder o autocarro.

12.1.14

1º Resgate

O Papa quis de Giotto um desenho que justificasse a fama do seu talento. O pintor traçou à mão um círculo tão circular que nem com um compasso o faria mais perfeito. O mundo encheu-se de espanto, tanto pela circularidade do círculo quanto pela audácia do executante, e Giotto foi declarado o maior artista do seu tempo.
O círculo de Giotto não sobreviveu: dele conhecemos apenas as obras menores.