29.11.08

O Tempora, O Mores

Sempre que se aproxima um fim-de-semana a dar assim para o maiorzinho, a Assembleia da República tende à rarefacção (“rarefacção”! Gostou?). As cadeiras vazias não dão uma imagem bonita, eu sei, mas note que os parlamentares estão apenas honrando uma tradição clássica: já quando Cícero clamava “O Tempora! O Mores!”, nem um nem outro se encontravam na sala do Senado.

28.11.08

A Felicidade

Vinha no carro ouvindo um coral de Holst na Antena 2 e pensando, céus, como é belo, e em como esses instantes de encantamento se comprimem cada vez mais com o gastar dos anos, tão menos frequentes e tão mais curtos, mas tão mais violentos (violentos é o plural certo), tão violentos que um dia morreríamos durante um desses momentos singulares e seria isso a Felicidade.

25.11.08

Voo curto

Olhei consternado o triste recheio do tabuleirinho. Mas imaginei a hospedeira debruçando-se sobre mim e sussurrando, “Se os restaurantes voam mal, por que haviam as companhias aéreas de servir boa comida, seu tolinho?”, e admito que degustei, saboreei até.

19.11.08

Ambiguidade engraçada

Arnaldo inscrevera-se no clube de leitura do bairro porque lhe tinham dito que aquilo era “só gajas”, mas ninguém o avisara que tinha de saber ler. O primeiro dia foi uma vergonha, só para soletrar o título do livro demorou quinze minutos e ainda insistiu com a animadora que “ninguém se chama ‘Sveva’” e que sabia perfeitamente que Modignani era um pintor porque tinha visto o filme. Acabou expulso sob um chuvisco de protestos muito finos. Mas saiu digno, demonstrando o quanto Drummond tinha razão quando escreveu que cada parte do corpo tem a sua linguagem.

“Deixa, até tiveste sorte”, consolaram-no os colegas lá da panificadora, “ainda se as gajas lessem Joyce ou Beckett ou até Auster ou Roth e assim”, e Arnaldo, mais animado, ia espetando fruta cristalizada na massa do bolo-rei e pensando em como “cristalizada” é o nome que alguns neurocientistas dão ao tipo de inteligência que permite responder a tudo em concursos de TV, e em como a expressão “the US presidential race”, que ele ouvira havia dias na CNN, tinha ganho uma ambiguidade engraçada.

16.11.08

Se puder, não falte

Ascânio acreditava que não existem guerras justas, apenas pazes injustas. Em rapaz, mobilizaram-no; recusou-se. Encarceraram-no, e ele nada. Torturaram-no, e ele firme. Então prescreveram morte por fuzilamento, mas Ascânio negou-se ainda: a sua objecção de consciência, explicou, era tanto de matar quanto de morrer.

Deplorando o vazio legal, libertaram-no.

Viveu séculos. Dias atrás, porém, um burocrata sem mais nada que fazer tropeçou na ficha de Ascânio e determinou pôr um fim ao abuso.

O enterro sai amanhã, não sei para que cemitério, sequer em que país, mas se puder não falte – ou ninguém assistirá ao funeral de Ascânio, o homem mais velho do mundo.

Providência

Sinal de que a Providência existe: de entre duzentos países que há no mundo, nascer-se no único em que não se é estrangeiro.

Mínimas

Acertar por pouco: errar ao lado.

Mínimas

Cuidado com a fé que move montanhas em zonas de paisagem protegida.

12.11.08

Ácidos

Depois de Wilt, confirmo a ideia que me ficou após ter lido Blott on the Landscape e Ancestral Vices: Sharpe é um Wodehouse em ácidos.