19.11.08

Ambiguidade engraçada

Arnaldo inscrevera-se no clube de leitura do bairro porque lhe tinham dito que aquilo era “só gajas”, mas ninguém o avisara que tinha de saber ler. O primeiro dia foi uma vergonha, só para soletrar o título do livro demorou quinze minutos e ainda insistiu com a animadora que “ninguém se chama ‘Sveva’” e que sabia perfeitamente que Modignani era um pintor porque tinha visto o filme. Acabou expulso sob um chuvisco de protestos muito finos. Mas saiu digno, demonstrando o quanto Drummond tinha razão quando escreveu que cada parte do corpo tem a sua linguagem.

“Deixa, até tiveste sorte”, consolaram-no os colegas lá da panificadora, “ainda se as gajas lessem Joyce ou Beckett ou até Auster ou Roth e assim”, e Arnaldo, mais animado, ia espetando fruta cristalizada na massa do bolo-rei e pensando em como “cristalizada” é o nome que alguns neurocientistas dão ao tipo de inteligência que permite responder a tudo em concursos de TV, e em como a expressão “the US presidential race”, que ele ouvira havia dias na CNN, tinha ganho uma ambiguidade engraçada.