30.9.14

Que tal um saltinho ao Algarve?


«Há perto de 16 meses que José Bandeira vem fotografando o antigo bairro do Dafundo, às portas de Lisboa. Primeiro atraído pelos seus edifícios invulgares e paisagens ribeirinhas, ele viria a conhecer Euclides, um imigrante de Cabo Verde que mantém uma pequena taberna na marginal, e através dele muitos dos residentes do edifício Clemente Vicente, onde aquela se situa. A austera construção foi levantada há perto de um século para alojar os operários de duas fábricas da vizinhança e alberga hoje uma população diferenciada, com uma componente significativa de reformados e imigrantes. O “Café Africano”, de Euclides, serve de ponto de encontro entre os moradores do Clemente Vicente e outros habitantes do velho Dafundo, alguns dos quais a viver situações de destituição. Talvez porque Bandeira faz ponto de honra em lhes entregar impressões das fotografias, os habitantes aprenderam a confiar nele e na sua câmara. Aquelas são, assume o autor sem ambiguidade, o compromisso possível entre o seu ideal fotográfico e a ideia que os fotografados têm do que deve ser um retrato. Vistas como um todo, as centenas de imagens que Bandeira coligiu no último ano e meio no bairro oeirense constituem tanto uma demanda estética como documentos de uma realidade em vias de desaparecer.
Em dado momento, o interesse de Bandeira pelos Clássicos levou-o a estabelecer entre o edifício Clemente Vicente e a cidadela de Tróia uma ligação que ele mesmo classifica como "improvável". Ajudou-o a construir o símile o facto de os residentes manterem pequenos barcos, tendas, mesas e cadeiras, hortas, pombais e toda a sorte de estranhos objectos numa faixa adjacente à linha de caminho-de-ferro Lisboa-Cascais, esta por sua vez paralela à linha de costa da hoje muito degradada praia do Dafundo. Na faixa de tendas e barcos Bandeira viu um acampamento micénico e na linha de caminho-de-ferro uma muralha valada (“O que é um comboio suburbano senão um muro que se move?”, pergunta). Para completar o quadro, a temida Avenida Ivens, uma longa, concorrida recta sem travessias para peões, desempenhou o papel de planície troiana. 
Definida uma geografia, Bandeira começou a alimentar a ideia de fazer posar alguns dos residentes como personagens da Ilíada e do Ciclo Épico. Isso implicava contar a cada um deles, de forma tão completa quanto possível, a história da Guerra de Tróia, do Julgamento de Páris aos regressos dos heróis. Como reagiriam à narrativa, e às questões morais que coloca, pessoas que jamais haviam ouvido falar dos Clássicos mas a quem a experiência de vida – incluindo, em muitos casos, a guerra – emprestava uma particular autoridade? Existiriam pontos de contacto entre a fragilidade, desesperança até, da sua situação e a dos contendores gregos e troianos após dez anos de conflito? A ideia viria a passar a projecto de facto quando a professora Adriana Nogueira, da Universidade do Algarve, sugeriu ao autor que aquele poderia ter cabimento no congresso “Imagines IV”, dedicado ao Mediterrâneo Antigo e o seu papel nas Artes Visuais e Performativas. Durante os meses de Julho e Agosto, Bandeira reuniu uma selecção de 24 imagens, tantas quantos os cantos da Ilíada: é esse grupo de fotografias que agora constitui a exposição “Nem Gregos nem Troianos”.
Nos últimos dias de Agosto, os habitantes do Clemente Vicente tomaram conhecimento de que as obras para a conclusão do Passeio Marítimo de Algés, que vai ligar esta localidade à Cruz Quebrada através do Dafundo, iriam ter início. Com a ajuda dos residentes, que esperam melhorias para a zona, os barcos foram deslocados para o areal por uma escavadora. O restante foi destruído e despejado para um contentor verde com a palavra “Renascimento” pintada. Quando viu o contentor sobre o descampado frente ao edifício Clemente Vicente, Bandeira não pôde deixar de se perguntar: “Aquilo é um cavalo?”»
(Do texto de introdução à exposição)

Hamlet e eu.


18.7.14

Viva o Povo Brasileiro

Duas madrugadas atrás a minha perna esquerda acordou-me: doía, doía muito. Tomei analgésicos mas a dor não passava. Lembrei-me da morte de Guimarães Rosa contada por Nelson Rodrigues. Talvez fosse um bocadinho treta (Rodrigues inventava), mas era uma história simples, plausível. O grande homem telefonara à mulher, ou talvez fosse uma amiga, não me lembro, dizendo de uma dor no braço que “não era normal”. Pediu-lhe ajuda. Depois, socorro. Estava nisto e morreu. Também eu me via já morto, sendo a dor na perna o indubitável sinal. Agradeci; esperei: não morri. O erro foi talvez o ter-me alcandorado a termo de comparação com Guimarães Rosa. Não voltei a pegar no sono. De manhã li as notícias sobre os arrufos na Esquerda e achei que talvez fosse disso porque a perna que me doía era a esquerda. Que foi? Tem uma explicação melhor?
Agora leio a morte de João Ubaldo Ribeiro. Leio, leio e não entendo como apenas me doeu uma perna e não me doeram as mãos, os olhos, enfim, o corpo inteiro.

16.6.14

A Vida Clandestina

Eu à época fumava; e às vezes fumava em lugares estranhos. Em Grenoble era num gabinete de paredes encardidas no piso térreo de uma empresa de tecnologia de ponta. Tinha janelinhas de guilhotina sempre abertas para o Dezembro dos Alpes e por única peça de mobília um cinzeiro de pé, ao centro, embaraçoso de tão cheio. Acredito que não o esvaziaram nunca, e que hoje o cone de beatas há-de ter ultrapassado em proeminência o pico do Chamechaude (digo o do Chamechaude para que não pense que estou a exagerar). Uma bancada na parede tornava-se inacessível por efeito de um aviso descortês de proibido sentar. Os fumadores (os outros, por nojo, nunca entravam) sentiam ali um desconforto tão intenso – do frio, do cheiro, do enxovalho – que não tiravam do cigarro consolo e saíam acanhados e tristes, de uma tristeza um pouco amarela.

Em São Paulo era numa divisão de um dos últimos andares de um arranha-céus, frequentada do lado de dentro por executivos em escapadinha de reuniões decisivas e do lado de fora por negros urubus. Talvez por causa do vento, talvez por motivos mais funestos, as grandes janelas não podiam ser abertas e a exaustão de ar era feita através de cilindros ciclópicos. De vez em quando passavam libelinhas ruidosas transportando homens de fato escuro, poderosos como heróis da Ilíada nos seus carros de combate. Eles saíam num terraço, desciam dois andares, davam as suas ordens, talvez até despedissem alguém; depois partiam para repetir o ritual noutro poiso qualquer, no entretanto elogiando a vista da cidade que às vezes parecia tão Nova Iorque assim vista do ar, mas era num relance só e a luz tinha de ser a de certa hora da manhã.

27.1.14

Recapitulação V

Um velho muito velho e estragado encontrou o rei de França junto a um Mercúrio em bronze e entabulou conversa com ele. Sentaram-se nas conchas de uma fontezinha rococó com peixes encarnados e tritões de pedra e contaram as suas vidas um ao outro. O velho falou das imensas provações por que havia passado na sua muito longa existência; o rei, do seu extraordinário poderio. Quando já não tinham mais nada para dizer um ao outro, o velho perguntou ao monarca se trocaria de vida com ele. O rei de França respondeu: «O diabo seja cego, surdo e mudo!» E o pobre diabo ficou cego, surdo e mudo.

17.1.14

O Lisboeta à Chuva

O lisboeta acorda, espreita pela janela, tira uma fotografia à coisa branca no asfalto (neva na rua dele!); não é neve, é granizo, faço ideia o quanto se ririam disso a norte mas no fundo é tudo igual, tudo coisa branca, conheço quem a odeie porque tem que lhe aturar as inconveniências metade do ano. O lisboeta lava-se, agasalha-se um pouco mais do que o costume e sai para a rua. A medo pisa a coisa branca, confirma que escorrega muito, troca duas palavras de espanto com a empregada da boutique do rés-do-chão e lá vai, adaptado, para o seu emprego, ou para o seu desemprego, ou para o que calhe, como se este clima parisiense lhe fosse a coisa mais natural do mundo. Estou a vê-lo ao fundo da rua, já corre, é para não perder o autocarro.

12.1.14

1º Resgate

O Papa quis de Giotto um desenho que justificasse a fama do seu talento. O pintor traçou à mão um círculo tão circular que nem com um compasso o faria mais perfeito. O mundo encheu-se de espanto, tanto pela circularidade do círculo quanto pela audácia do executante, e Giotto foi declarado o maior artista do seu tempo.
O círculo de Giotto não sobreviveu: dele conhecemos apenas as obras menores.