Após o décimo primeiro derrame na vista tentando ler a mesma frase de “What I Loved”, de Siri Hustvedt (“We tracked Matt’s development with the precision and attentiveness of Enlightenment scientists”), percebi finalmente que o problema não estava na frase, aliás muitíssimo conseguida, mas nos olhos em si.
Eu havia sido prevenido pela minha oculista e pela Oprah Winfrey de que, em alguma altura após o 40º ano de vida, os mecanismos de focagem japoneses no interior dos globos oculares estão programados para deixar de obedecer às ordens que o cérebro lhes fornece, em particular se este for de fabrico nacional. A nossa visão ganha personalidade e passa a interessar-se exclusivamente por aquilo que lhe dita o capricho próprio; sendo que raramente lhe apetece fixar-se em frases de pendor literário ou filosófico, preferindo perder-se em objectos distantes, nem sempre desinteressantes mas frequentemente inapropriados para o homem de princípios elevados que modestamente me vanglorio de ser.
Eu, porém, tomara a benigna advertência por uma tentativa comercialmente orientada para impingir “lentes progressivas” aos meus óculos novos. Sabe quando vai ao mecânico trocar um pneu e ele lhe diz que aproveitou para trocar discos, pastilhas e o motor? Pois eu achei que a visão humana não deve ser doutrinada e escolhi lentes com a mesma graduação das que trazia, uma vez que a dificuldade que me levava a trocar de óculos consistia apenas numa certa inadequação da armação: por mais que uma vez amigos me preveniram de que as hastes lhes pareciam mais apropriadas para literatura light que para o género de leitura pretensiosa e obscura que gosto de exibir em esplanadas, centros culturais e antigos países de Leste.
[Eu tentando perceber por que raio escrevi isso dos países de Leste]
Agora, curvado ao peso da evidência e sufocado pelos fumos de suspeição em que injustamente envolvera a honesta oftalmologista, trago para casa “óculos para ler”. Terei de me habituar ao ritual de andar com o aparato óptico pendurado ao pescoço ou assente na pontinha do nariz, uma vez que, para lá dos 40cm, toda a gente me parece o rato Mickey – ou a rata Minnie, se tiver voz grossa –, motivo pelo qual não dispenso os óculos “de ver ao longe”.
Eu não o esperava, dióptrico leitor, mas a minha capacidade de leitura aumentou de uma forma excepcional. Li em meio dia o baú da Summa Theologiae de Aquino, incluindo a parte que ele nunca chegou a escrever, no latim original; aproveitei os intervalinhos de café para uma revisão aprofundada da Suda bizantina e, em jeito de digestivo, devorei os três volumes de Decline and Fall of the Roman Empire, de Gibbon, anotando erros factuais e incorrecções de interpretação nas margens de nada menos que 638 páginas. Também as minhas capacidades indutiva e dedutiva (antes apenas distinguia uma da outra expondo-as, lado a lado, à luz do sol) sofreram um apreciável incremento de acuidade. Ao passar os olhos com os óculos novos pelo Crítias, por exemplo, apercebi-me de que Sócrates teria morrido com muito mais qualidade se os atenienses do período clássico usassem cicuta de cultura biológica.
Planeio agora uma velhice elegante. Óculos na ponta do nariz sugerem temperamento afável e evocam a sabedoria da idade; um confortável quimono japonês em seda dará o necessário toque de sofisticação novecentista; a gota, em piorando, pode ser aliviada com o auxílio de uma distinta bengala. Tudo isto vejo eu agora muitíssimo bem.
Oh, ok, um momento de franqueza. A verdade é que estou ainda a habituar-me. Não tenho sequer a certeza de que esteja aí desse lado, embaciado leitor. Nestas inusitadas semanas de pontes que vão de nenhum lado a lugar algum, não há como sabê-lo. Mas vou fiar-me, mesmo não o vendo a si, que o leitor, a mim, me consegue ver com cartesiana convicção, isto é: clara e distintamente.