30.9.11
5.8.11
23.5.11
Recapitulação VIII
Um homem recapitulava toda a sua vida enquanto a maca que ocupava deslizava pelos corredores; e pensou que não a havia vivido na sua plenitude. O rio em que não nadara em criança com medo das cobras de água. O primeiro beijo que não dera com nojo da saliva. As namoradas com quem não namorara porque não queria ter que tomar banho todos os dias. A mulher que não pedira em casamento porque não estava seguro de que ela tomasse banho todos os dias.
Então o momento chegou. O bem-estar, o túnel, a luz muito branca, as vozes chamando. A maca deteve-se. Mãos voaram como pássaros sobre o seu corpo inerte. Mas ele, como sempre, hesitou; e acabou tendo uma experiência de quase-morte.
Então o momento chegou. O bem-estar, o túnel, a luz muito branca, as vozes chamando. A maca deteve-se. Mãos voaram como pássaros sobre o seu corpo inerte. Mas ele, como sempre, hesitou; e acabou tendo uma experiência de quase-morte.
18.5.11
Recapitulação VII
Numa remota região da China, tão remota que ali os rios desaguam uns nos outros por desconhecerem a existência do mar, habita um povo do qual jamais houve notícia. O que mais o distingue dos outros povos é a sua estranha língua: cada indivíduo pode pronunciar cada uma das palavras do léxico uma única vez. Talvez por isso, existem – de acordo com a última contagem – 271 palavras diferentes para significar «facécia», 6525 para «pórtico», 895477 para «linda» e 9003226635910 para «não».
Os habitantes desta região remota da China possuem nomes ainda mais compridos do que os dos reis de Portugal.
Os habitantes desta região remota da China possuem nomes ainda mais compridos do que os dos reis de Portugal.
Tribunal das relações
Não era comum encontrarem-se assim, numa mesa de café. Ela chegou tarde, como sempre fazia, e mal humorada, como era seu hábito. "Que me queres?", disparou. "Não vale a pena estar com rodeios", respondeu ele com uma voz triste, "odeio outra".
Ela demorou a recompor-se. Depois deixou que uma película de ternura se lhe instalasse nos olhos.
Ela demorou a recompor-se. Depois deixou que uma película de ternura se lhe instalasse nos olhos.
20.4.11
Recapitulação III
“Pode tirar-me tudo menos o Direito à Indignação”, indignava-se um Homem Indignado. “Não posso tirar-lho, mas posso taxá-lo”, respondeu o Governante Insensível. E quanto mais o Homem Indignado com isto se indignava, mais o Governante Insensível, com a ajuda de um Indignómetro, via o lado da receita subir.
18.4.11
Recapitulação II
O inspector dobrou a gabardina, poisou-a cuidadosamente sobre as costas da cadeira, encheu o peito de ar e disse, ao mesmo tempo que expirava:
«Foi o Marcelo.»
«O Marcelo, inspector…?», escandalizou-se o guarda Caetano.
«O Marcelo, Caetano.»
Tomás entrou de rompante no gabinete, corado ainda do opíparo almoço.
«Viva, inspector! Viva, Caetano!»
«O Américo, Tomás?», perguntou o inspector.
«Pensei que estava consigo.»
«Comigo? Não o vejo desde ontem. Preciso que você vá com ele e com o Caetano.»
«Fazer o quê, inspector?»
«Buscar o Marcelo», suspirou o guarda. Tomás voltou a sua incredulidade para o cívico:
«O Marcelo, Caetano?»
«Foi o Marcelo.»
«O Marcelo, inspector…?», escandalizou-se o guarda Caetano.
«O Marcelo, Caetano.»
Tomás entrou de rompante no gabinete, corado ainda do opíparo almoço.
«Viva, inspector! Viva, Caetano!»
«O Américo, Tomás?», perguntou o inspector.
«Pensei que estava consigo.»
«Comigo? Não o vejo desde ontem. Preciso que você vá com ele e com o Caetano.»
«Fazer o quê, inspector?»
«Buscar o Marcelo», suspirou o guarda. Tomás voltou a sua incredulidade para o cívico:
«O Marcelo, Caetano?»
9.2.11
Mínimas
O verdadeiro céptico não é o que duvida de tudo; é o que procura a solução depois de a ter encontrado.
25.1.11
Não Há Crise
Keynes está de volta, avise a mulher dele
Por José Bandeira, especialista
Voz: Bem vindo à Linha Economia. Para saber se a TAEG é uma companhia aérea low cost, pressione “1”. Se pretende uma entrevista para emprego, pressione “2” noutro telefone qualquer. Para falar com o presidente do Banco Central Europeu, pressione “3”. Para conhecer o valor do défice, digite “1129745084534781,21”. Para insultar um representante da Moody’s, pressione “*****”. Para falar com um técnico, pressione a sua tia. [Eu pressionando a minha tia]
Técnico: Bom dia. Eu dizia-lhe como me chamo, mas nem isso sei. Em que posso ajudá-lo?
Eu: Eh… bom dia. Aqui Bandeira. Parece-me que tenho a Economia avariada.
Técnico: Estou a ver. Posso saber de onde está a ligar?
Eu: [indo até à janela e olhando para os Pais Natal pendurados nas varandas desde o ano passado] Portugal, tenho quase a certeza.
Técnico: Por favor indique o 13º e o 1298º dígitos do seu código de acesso.
Eu: O que é isso?
Técnico: Correcto. Senhor Bandeira, verificou se a Economia está ligada?
Eu: Julgo que sim. Pelo menos tem um monte de luzes vermelhas acesas, ou talvez se trate de um pequeno incêndio.
Técnico: Muito bem. Experimentou clicar em “A Minha Economia” no Ambiente de Trabalho?
Eu: Sim. Aparece aquele jogo das minas.
Técnico: Hmm… ok, parece-me bem. Clique por favor no ícone “Painel de Especialistas”.
Eu: [clicando no ícone] Não acontece nada.
Técnico: Parece estar a funcionar correctamente. Dê-me a sua morada que nós far-lhe-emos chegar um gráfico com toda a informação de que necessita. [nota: consultar gráfico nesta página]
Eu: Mas preciso da minha morada, não tenho outra onde viver.
Técnico: [com um tom de algum desdém] Compreendo. Talvez consigamos resolver a coisa apenas com o seu endereço. [Eu fornecendo o meu endereço]
Técnico: Com o gráfico segue uma foto da Scarlett Johanson nua. Fazemos isso para que os utentes não prestem atenção ao gráfico. Se preferir, temos uma versão com o Brad Pitt. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
Eu: Bem… quero dizer… então a Economia está em condições? Posso ficar descansado?
Técnico: Sim, sim. Não há crise. [Clic]
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(Texto publicado no nº 4 da revista Companhias.)
Por José Bandeira, especialista
![]() |
Instruções para a Economia portuguesa (válidas desde 1995 até KLR650). |
Voz: Bem vindo à Linha Economia. Para saber se a TAEG é uma companhia aérea low cost, pressione “1”. Se pretende uma entrevista para emprego, pressione “2” noutro telefone qualquer. Para falar com o presidente do Banco Central Europeu, pressione “3”. Para conhecer o valor do défice, digite “1129745084534781,21”. Para insultar um representante da Moody’s, pressione “*****”. Para falar com um técnico, pressione a sua tia. [Eu pressionando a minha tia]
Técnico: Bom dia. Eu dizia-lhe como me chamo, mas nem isso sei. Em que posso ajudá-lo?
Eu: Eh… bom dia. Aqui Bandeira. Parece-me que tenho a Economia avariada.
Técnico: Estou a ver. Posso saber de onde está a ligar?
Eu: [indo até à janela e olhando para os Pais Natal pendurados nas varandas desde o ano passado] Portugal, tenho quase a certeza.
Técnico: Por favor indique o 13º e o 1298º dígitos do seu código de acesso.
Eu: O que é isso?
Técnico: Correcto. Senhor Bandeira, verificou se a Economia está ligada?
Eu: Julgo que sim. Pelo menos tem um monte de luzes vermelhas acesas, ou talvez se trate de um pequeno incêndio.
Técnico: Muito bem. Experimentou clicar em “A Minha Economia” no Ambiente de Trabalho?
Eu: Sim. Aparece aquele jogo das minas.
Técnico: Hmm… ok, parece-me bem. Clique por favor no ícone “Painel de Especialistas”.
Eu: [clicando no ícone] Não acontece nada.
Técnico: Parece estar a funcionar correctamente. Dê-me a sua morada que nós far-lhe-emos chegar um gráfico com toda a informação de que necessita. [nota: consultar gráfico nesta página]
Eu: Mas preciso da minha morada, não tenho outra onde viver.
Técnico: [com um tom de algum desdém] Compreendo. Talvez consigamos resolver a coisa apenas com o seu endereço. [Eu fornecendo o meu endereço]
Técnico: Com o gráfico segue uma foto da Scarlett Johanson nua. Fazemos isso para que os utentes não prestem atenção ao gráfico. Se preferir, temos uma versão com o Brad Pitt. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
Eu: Bem… quero dizer… então a Economia está em condições? Posso ficar descansado?
Técnico: Sim, sim. Não há crise. [Clic]
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(Texto publicado no nº 4 da revista Companhias.)
21.1.11
Une petite histoire bourgeoise
A FNAC, ou Fédération Nationale d’Achats des Cadres, foi fundada em 1954 por André Essel e e Max Théret, dois membros do movimento Jeunes Socialistes. O seu intuito expresso era o de permitir aos operários a aquisição de bens de retalho a preços acessíveis (soube isso por obscuros documentos que consultei, dias e noites a fio e durante vinte anos, na Bibliothèque Nationale – ou talvez por uma rapidinha na Wikipédia, não me lembro bem). Todos os produtos eram testados num centro independente e aqueles que não atingissem os padrões mínimos iam para uma lista negra. Os funcionários eram treinados de forma a conhecer a fundo a sua área e poder fornecer aos membros da classe trabalhadora todas as informações de que estes necessitassem.
Hélas, todos sabemos o quanto os operários mudaram desde então.
Hélas, todos sabemos o quanto os operários mudaram desde então.
4.1.11
Ditongo Alentejano
“Sou uma mulher simples, mas não sou cega nem surda, Manel. É essa moça da cidade que veio morar aqui para a aldeia. Está fazendo de ti um tonto.”
O pastor afundou-se um pouco mais na samarra.
“Não digas disparates, Dores.”
“Estás vendo? Já nem pronuncias o –e em posição átona final como –i.”
“Tolice. Estou chupando uma azeitona.”
“E o –i em lugar do –e pretónico? E a ditongação de –e em –ei?”
Manel dobrou-se devagar e aconchegou as achas da lareira, tentando ganhar um pouco de tempo. Como não se apercebera que andava ditongando o –e?
O pastor afundou-se um pouco mais na samarra.
“Não digas disparates, Dores.”
“Estás vendo? Já nem pronuncias o –e em posição átona final como –i.”
“Tolice. Estou chupando uma azeitona.”
“E o –i em lugar do –e pretónico? E a ditongação de –e em –ei?”
Manel dobrou-se devagar e aconchegou as achas da lareira, tentando ganhar um pouco de tempo. Como não se apercebera que andava ditongando o –e?
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